Pero Vaz de Caminha
Escrivão e navegador português (1450-15/12/1500). Pouco se sabe sobre
sua vida. Nasce provavelmente na cidade do Porto, filho de Vasco
Fernandes de Caminha, cavaleiro do duque de Bragança. Casa-se com dona
Catarina e tem uma filha, Isabel.
Designado escrivão da feitoria de Calicute, na Índia, para onde segue
com a bem equipada frota do comandante Pedro Álvares Cabral,
responsável pelo "descobrimento" do Brasil em 22 de abril de 1500.
A
carta em que anuncia o feito ao rei dom Manuel, datada de 1° de maio de
1500, notabiliza-se como o mais importante documento relativo à
descoberta do Brasil pela riqueza de detalhes. Guardada nos arquivos da
Torre do Tombo, em Lisboa, ela foi ignorada por mais de três séculos.
É divulgada pela primeira vez em 1817, no livro Corografia Brasileira,
escrito pelo padre Aires do Casal. Ainda em 1500, Caminha continua a
viagem para a Índia com Cabral e morre durante um assalto dos mouros à
feitoria de Calicute.
·
Citados diretamente na carta
- Pedro Álvares Cabral (comandante da frota de 13 navios)
- Vasco de Ataíde (comandante)
- Nicolau Coelho (comandante)
- Sancho de Tovar (comandante)
- Simão de Miranda (comandante)
- Aires Correia (comandante, feitor geral)
- Bartolomeu Dias (comandante)
- Diogo Dias (comandante)
- Aires Gomes (comandante)
- Afonso Lopes (piloto)
- Pêro Escobar (piloto)
- Henrique de Coimbra (frei)
- Afonso Ribeiro (degredado)
- Gaspar de Lemos (comandante) - Retornou a Portugal com a carta. Partiu dia 2 de maio
- Nuno Leitão da Cunha (comandante da caravela Anunciada)
- Pero de Ataíde (comandante do navio São Pedro)
- Luís Pires (comandante)
- Simão de Pina (comandante)
A
Carta de Pero Vaz de Caminha
Senhor,
Posto que o Capitão-mor
desta Vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a notícia
do achamento desta Vossa terra nova, que se agora nesta navegação achou, não
deixarei de também dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor
puder, ainda que — para o bem contar e falar — o saiba pior que todos fazer!
Todavia tome Vossa Alteza
minha ignorância por boa vontade, a qual bem certo creia que, para aformosentar
nem afear, aqui não há de pôr mais do que aquilo que vi e me pareceu. Da
marinhagem e das singraduras do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza —
porque o não saberei fazer — e os pilotos devem ter este cuidado. E portanto Senhor,
do que hei de falar começo:
E digo quê:
A partida de Belém foi —
como Vossa Alteza sabe, segunda-feira 9 de março.E sábado, 14 do dito mês,
entre as 8 e 9 horas, nos achamos entre as Canárias,mais perto da Grande
Canária. E ali andamos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três a
quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês, às dez horas mais ou menos, houvemos
vista das ilhas de Cabo Verde, a saber da ilha de São Nicolau,segundo o dito de
Pero Escolar, piloto.
Na noite seguinte à
segunda-feira amanheceu, se perdeu da frota Vasco de Ataíde com a sua nau, sem
haver tempo forte ou contrário para poder ser! Fez o capitão suas diligências
para o achar, em umas e outras partes. Mas... não apareceu mais !
E assim seguimos nosso
caminho, por este mar de longo, até que terça-feira das Oitavas de Páscoa, que
foram 21 dias de abril, topamos alguns sinais de terra, estando da dita Ilha —
segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670 léguas — os quais eram muita
quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam Botelho, e assim mesmo
outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã,
topamos aves a que chamam fura buchos.
Neste mesmo dia, a horas
de véspera, houvemos vista de terra! a saber,primeiramente de um grande monte,
muito alto e redondo; e de outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra
chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte
Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz!
Mandou lançar o prumo.
Acharam vinte e cinco braças. E ao sol-posto umas seis léguas da terra,
lançamos ancoras, em dezenove braças — ancoragem limpa. Ali ficamo-nos toda
aquela noite. E quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos em direitura
à terra, indo os navios pequenos diante — por dezessete, dezesseis,quinze,
catorze, doze, nove braças — até meia légua da terra, onde todos lançamos ancoras,
em frente da boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas, pouco
mais ou menos.E dali avistamos homens que andavam pela praia, uns sete ou oito,
segundo disseram os navios pequenos que chegaram primeiro.
Então lançamos fora os
batéis e esquifes. E logo vieram todos os capitães das naus a esta nau do
Capitão-mor. E ali falaram. E o Capitão mandou em terra a Nicolau Coelho para
ver aquele rio. E tanto que ele começou a ir-se para lá, acudiram pela praia
homens aos dois e aos três, de maneira que, quando o batel chegou à boca do
rio, já lá estavam dezoito ou vinte.
Pardos, nus, sem coisa
alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas.
Vinham todos rijamente em direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que
pousassem os arcos. E eles os depuseram. Mas não pôde deles haver fala nem
entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente
arremessou-lhe um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na
cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um sombreiro de penas
de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como de
papagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas que
querem parecer de aljôfar, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa
Alteza. E com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais
fala, por causa do mar.
À noite seguinte ventou
tanto sueste com chuvaceiros que fez caçar as naus. E especialmente a
Capitaina. E sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho
dos pilotos, mandou o Capitão levantar ancoras e fazer vela. E fomos de longo
da costa, com os batéis e esquifes amarrados na popa, em direção norte, para
ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso onde nós ficássemos, para tomar
água e lenha. Não por nos já minguar, mas por nos prevenirmos aqui. E quando
fizemos vela estariam já na praia assentados perto do rio obra de sessenta ou
setenta homens que se haviam juntado ali aos poucos. Fomos ao longo, e mandou o
Capitão aos navios pequenos que fossem mais chegados à terra e, se achassem
pouso seguro para as naus, que amainassem.
E velejando nós pela
costa, na distância de dez léguas do sítio onde tínhamos levantado ferro,
acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro, muito bom e
muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram. E as
naus foram-se chegando, atrás deles. E um pouco antes de sol posto amainaram
também, talvez a uma légua do recife, e ancoraram a onze braças. E estando
Afonso Lopez, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, foi, por mandado do
Capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meter-se logo no esquife a
sondar o porto dentro. E tomou dois daqueles homens da terra que estavam numa
almadia: mancebos e de bons corpos. Um deles trazia um arco, e seis ou sete
setas. E na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas não os aproveitou.
Logo, já de noite, levou-os à Capitaina, onde foram recebidos com muito prazer
e festa.
A feição deles é serem
pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam
nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixa de encobrir
suas vergonhas do que de mostrar a cara. A cerca disso são de grande inocência.
Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de
comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na
ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que
lhes fica entre o beiço e os dentes é feita a modo de roque de xadrez. E
trazem-no ali encaixado de sorte que não os magoa, nem lhes põe estorvo no
falar, nem no comer e beber. Os cabelos deles são corredios. E andavam
tosquiados, de tosquia alta antes do que sobre-pente, de boa grandeza, rapados
todavia por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a
fonte, na parte detrás, uma espécie de cabeleira, de penas de ave amarela, que
seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o
toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena por pena, com uma
confeição branda como, de maneira tal que a cabeleira era mui redonda e mui
basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.O Capitão,
quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, aos pés uma alcatifa por
estrado; e bem vestido, com um colar de ouro, mui grande, ao pescoço. E Sancho
de Tovar, e Simão de Miranda, e Nicolau Coelho, e Aires Corrêa, e nós outros
que aqui na nau com ele íamos sentados no chão, nessa alcatifa. Acenderam-se
tochas. E eles entraram. Mas nem sinal de cortesia fizeram, nem de falar ao
Capitão; nem a alguém. Todavia um deles fitou o colar do Capitão, e começou a
fazer acenos com a mão em direção à terra, e depois para o colar, como se
quisesse dizer-nos que havia ouro na terra. E também olhou para um castiçal de prata
e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal, como se lá também
houvesse prata!
Mostraram-lhes um papagaio
pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a
terra, como se os houvesse ali.
Mostraram-lhes um
carneiro; não fizeram caso dele.
Mostraram-lhes uma
galinha; quase tiveram medo dela, e não lhe queriam pôr a mão. Depois lhe
pegaram, mas como espantados. Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido,
confeitos, fartéis, mel, figos passados. Não quiseram comer daquilo quase nada;
e se provavam alguma coisa, logo a lançavam fora.
Trouxeram-lhes vinho em
uma taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram dele nada, nem quiseram mais.
Trouxeram-lhes água em uma
albarrada, provaram cada um o seu bochecho, mas não beberam; apenas lavaram as
bocas e lançaram-na fora.
Viu um deles umas contas
de rosário, brancas; fez sinal que lhas dessem, e folgou muito com elas, e
lançou-as ao pescoço; e depois tirou-as e meteu-as em volta do braço, e acenava
para a terra e novamente para as contas e para o colar do Capitão,como se
dariam ouro por aquilo.
Isto tomávamos nós nesse
sentido, por assim o desejarmos! Mas se ele queria dizer que levaria as contas
e mais o colar, isto não queríamos nós entender, por que lho não havíamos de
dar! E depois tornou as contas a quem lhas dera. E então estiraram-se de costas
na alcatifa, a dormir sem procurarem maneiras de encobrir suas vergonhas, as
quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas.
O Capitão mandou pôr por
baixo da cabeça de cada um seu coxim; e o da cabeleira esforçava-se por não a
estragar. E deitaram um manto por cima deles; e consentindo, aconchegaram-se e
adormeceram.
Sábado pela manhã mandou o
Capitão fazer vela, fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e tinha seis
a sete braças de fundo. E entraram todas as naus dentro, e ancoraram em cinco
ou seis braças -- ancoradouro que é tão grande e tão formoso de dentro, e tão
seguro que podem ficar nele mais de duzentos navios e naus. E tanto que as naus
foram distribuídas e ancoradas, vieram os capitães todos a esta nau do
Capitão-mor. E daqui mandou o Capitão que Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias
fossem em terra e levassem aqueles dois homens, e os deixassem ir com seu arco
e setas, aos quais mandou dar a cada um uma camisa nova e uma carapuça vermelha
e um rosário de contas brancas de osso, que foram levando nos braços, e um
cascavel e uma campainha. E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo
degredado, criado de dom João Telo, de nome Afonso Ribeiro, para lá andar com
eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau
Coelho. Fomos assim de frecha direitos à praia. Ali acudiram logo perto de duzentos
homens, todos nus, com arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós levamos
acenaram-lhes que se afastassem e depusessem os arcos. E eles os depuseram. Mas
não se afastaram muito. E mal tinham pousado seus arcos quando saíram os que
nós levávamos, e o mancebo degredado com eles. E saídos não pararam mais; nem
esperavam um pelo outro, mas antes corriam a quem mais correria. E passaram um
rio que aí corre, de água doce, de muita água que lhes dava pela braga. E
muitos outros com eles. E foram assim correndo para além do rio entre umas
moitas de palmeiras onde estavam outros. E ali pararam. E naquilo tinha ido o
degredado com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e levou até lá.
Mas logo o tornaram a nós. E com ele vieram os outros que nós leváramos, os quais
vinham já nus e sem carapuças.
E então se começaram de
chegar muitos; e entravam pela beira do mar para os batéis, até que mais não
podiam. E traziam cabaças d'água, e tomavam alguns barris que nós levávamos e
enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis. Não que eles de todo chegassem a
bordo do batel. Mas junto a ele, lançavam-nos da mão. E nós tomávamo-los. E
pediam que lhes dessem alguma coisa.
Levava Nicolau Coelho
cascavéis e manilhas. E a uns dava um cascavel, e a outros uma manilha, de
maneira que com aquela encarna quase que nos queriam dar a mão. Davam-nos
daqueles arcos e setas em troca de sombreiros e carapuças de linho, e de
qualquer coisa que a gente lhes queria dar. Dali se partiram os outros, dois
mancebos, que não os vimos mais.Dos que ali andavam, muitos — quase a maior
parte — traziam aqueles bicos de osso nos beiços.
E alguns, que andavam sem
eles, traziam os beiços furados e nos buracos traziam uns espelhos de pau, que
pareciam espelhos de borracha. E alguns deles traziam três daqueles bicos, a
saber um no meio, e os dois nos cabos.
E andavam lá outros,
quartejados de cores, a saber metade deles da sua própria cor, e metade de
tintura preta, um tanto azulada; e outros quartejados d'escaques.
Ali andavam entre eles
três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e
compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão
limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam.
Ali por então não houve
mais fala ou entendimento com eles, por a barbana deles ser tamanha que se não
entendia nem ouvia ninguém. Acenamos-lhes que se fossem. E assim o fizeram e
passaram-se para além do rio. E saíram três ou quatro homens nossos dos batéis,
e encheram não sei quantos barris d'água que nós levávamos. E tornamo-nos às
naus. E quando assim vínhamos, acenaram-nos que voltássemos. Voltamos, e eles
mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá com eles, o qual levava uma
bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para lá as dar ao senhor, se o
lá houvesse. Não trataram de lhe tirar coisa alguma, antes mandaram-no com
tudo. Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, que lhe desse aquilo. E
ele tornou e deu aquilo, em vista de nós, a aquele que o da primeira
agasalhara. E então veio-se, e nós levamo-lo.
Esse que o agasalhou era
já de idade, e andava por galanteria, cheio depenas, pegadas pelo corpo, que
parecia seteado como São Sebastião. Outros traziam carapuças de penas amarelas;
e outros, de vermelhas; e outros de verdes. E uma daquelas moças era toda
tingida de baixo a cima, daquela tintura e certo era tão bem feita e tão
redonda, e sua vergonha tão graciosa que a muitas mulheres de nossa terra,
vendo-lhe tais feições envergonhara, por não terem as suas como ela.
Nenhum deles era fanado,
mas todos assim como nós.
E com isto nos tornamos, e
eles foram-se.
À tarde saiu o Capitão-mor
em seu batel com todos nós outros capitães das naus em seus batéis a folgar
pela baía, perto da praia. Mas ninguém saiu em terra,por o Capitão o não querer,
apesar de ninguém estar nela. Apenas saiu — ele com todos nós — em um ilhéu
grande que está na baía, o qual, a quando baixa mar, fica mui vazio. Com tudo
está de todas as partes cercado de água, de sorte que ninguém lá pode ir, a não
ser de barco ou a nado. Ali folgou ele, e todos nós, bem uma hora e meia. E
pescaram lá, andando alguns marinheiros com um chinchorro; e mataram peixe
miúdo, não muito. E depois volvemo-nos às naus, já bem noite. Ao domingo de
Pascoela pela manhã, determinou o Capitão ir ouvir missa e sermão naquele
ilhéu. E mandou a todos os capitães que se arranjassem nos batéis e fossem com
ele. E assim foi feito. Mandou armar um pavilhão naquele ilhéu, e dentro
levantar um altar mui bem arranjado. E ali com todos nós outros fez dizer missa,
a qual disse o padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma
voz pelos outros padres e sacerdotes que todos assistiram, a qual missa,segundo
meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção.Ali estava com o
Capitão a bandeira de Cristo, com que saíra de Belém, a qual esteve sempre bem
alta, da parte do Evangelho.Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma
cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou uma solene e
proveitosa pregação, da história evangélica; e no fim tratou da nossa vida, e
do achamento desta terra, referindo-se à Cruz, sob cuja obediência viemos, que
veio muito a propósito, e fez muita devoção.Enquanto assistimos à missa e ao
sermão, estaria na praia outra tanta gente,pouco mais ou menos, como a de
ontem, com seus arcos e setas, e andava folgando. E olhando-nos, sentaram. E
depois de acabada a missa, quando nós sentados atendíamos a pregação,
levantaram-se muitos deles e tangeram corno ou buzina e começaram a saltar e
dançar um pedaço. E alguns deles se metiam em almadias — duas ou três que lá
tinham — as quais não são feitas como as que eu vi; apenas são três traves,
atadas juntas. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam, não se
afastando quase nada da terra, só até onde podiam tomar pé.Acabada a pregação
encaminhou-se o Capitão, com todos nós, para os batéis, com nossa bandeira
alta. Embarcamos e fomos indo todos em direção à terra para passarmos ao longo
por onde eles estavam, indo na dianteira, por ordem do
Capitão, Bartolomeu Dias
em seu esquife, com um pau de uma almadia que lhes o mar levara, para o
entregar a eles. E nós todos trás dele, a distância de um tiro de pedra.
Como viram o esquife de
Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água, metendo-se nela até onde mais
podiam. Acenaram-lhes que pousassem os arcos e muitos deles os iam logo pôr em
terra; e outros não os punham.
Andava lá um que falava
muito aos outros, que se afastassem. Mas não já que a mim me parecesse que lhe
tinham respeito ou medo. Este que os assim andava afastando trazia seu arco e
setas. Estava tinto de tintura vermelha pelos peitos e costas e pelos quadris,
coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua
própria cor. E a tintura era tão vermelha que a água não comia nem desfazia.
Antes, quando saía da água, era mais vermelho. Saiu um homem do esquife de
Bartolomeu Dias e andava no meio deles, sem implicar em nada com ele, e muito
menos ainda pensavam em fazer-lhe mal. Apenas lhe davam cabaças d'água; e
acenavam aos do esquife que saíssem em terra. Com isto se volveu Bartolomeu Dias ao
Capitão. E viemo-nos às naus, a comer, tangendo trombetas e gaitas, sem os mais
constranger. E eles tornaram-se a sentar na praia, e assim por então ficaram.
Neste ilhéu, onde fomos
ouvir missa e sermão, espraia muito a água e descobre muita areia e muito
cascalho. Enquanto lá estávamos foram alguns buscar marisco e não no acharam.
Mas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um muito
grande e muito grosso; que em nenhum tempo o vi tamanho. Também acharam cascas
de berbigões e de amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira. E depois
de termos comido vieram logo todos os capitães a esta nau, por ordem do
Capitão-mor, com os quais ele se aportou; e
una companhia. E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento
desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para a melhor mandar
descobrir e saber dela mais do que nós podíamos saber, por irmos na nossa viagem.E
entre muitas falas que sobre o caso se fizeram foi dito, por todos ou a maior parte,
que seria muito bem. E nisto concordaram. E logo que a resolução foi tomada, perguntou
mais, se seria bem tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a
Vossa Alteza, deixando aqui em lugar deles outros dois destes degredados.
E concordaram em que não
era necessário tomar por força homens, porque costume era dos que assim à força
levavam para alguma parte dizerem que há de tudo quanto lhes perguntam; e que
melhor e muito melhor informação da terra dariam dois homens desses degredados
que aqui deixássemos do que eles dariam se os levassem por ser gente que
ninguém entende. Nem eles cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer
que muito melhor estoutros o não digam quando cá Vossa Alteza mandar. E que
portanto não cuidássemos de aqui por força tomar ninguém, nem fazer escândalo;
mas sim, para os de todo amansar e apaziguar, unicamente de deixar aqui os dois
degredados quando daqui partíssemos.E assim ficou determinado por parecer
melhor a todos.Acabado isto, disse o Capitão que fôssemos nos batéis em terra. E ver-se-ia bem,
quejando era o rio. Mas também para folgarmos. Fomos todos nos batéis em terra,
armados; e a bandeira conosco. Eles andavam ali na praia, à boca do rio, para
onde nós íamos; e, antes que chegássemos, pelo ensino que dantes tinham,
puseram todos os arcos, e acenaram que saíssemos. Mas, tanto que os batéis
puseram as proas em terra, passaram-se logo todos além do rio, o qual não é
mais ancho que um jogo de mancal. E tanto que desembarcamos, alguns dos nossos
passaram logo o rio, e meteram-se entre eles.E alguns aguardavam; e outros se
afastavam. Com tudo, a coisa era de maneira que todos andavam misturados. Eles
davam desses arcos com suas setas por sombreiros e carapuças de linho, e por
qualquer coisa que lhes davam. Passaram além tantos dos nossos e andaram assim
misturados com eles, que eles se esquivavam, e afastavam-se; e iam alguns para
cima, onde outros estavam. E então o Capitão fez que o tomassem ao colo dois
homens e passou o rio, e fez tornar a todos. A gente que ali estava não seria
mais que aquela do costume. Mas logo que o Capitão chamou todos para trás,
alguns se chegaram a ele, não por o reconhecerem por Senhor, mas porque a
gente, nossa, já passava para aquém do rio. Ali falavam e traziam muitos arcos
e continhas, daquelas já ditas, e resgatavam-nas por qualquer coisa, de tal
maneira que os nossos levavam dali para as naus muitos arcos, e setas e contas.
E então tornou-se o Capitão para aquém do rio. E logo acudiram muitos à beira
dele.
Ali veríeis galantes,
pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim pelos corpos como pelas
pernas, que, certo, assim pareciam bem. Também andavam entre eles quatro ou
cinco mulheres, novas, que assim nuas, não pareciam mal.
Entre elas andava uma, com
uma coxa, do joelho até o quadril e a nádega, toda tingida daquela tintura
preta; e todo o resto da sua cor natural. Outra trazia ambos os joelhos com as
curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas, e
com tanta inocência assim descobertas, que não havia nisso desvergonha nenhuma.
Também andava lá outra
mulher, nova, com um menino ou menina, atado com um pano aos peitos, de modo
que não se lhe viam senão as perninhas. Mas nas pernas da mãe, e no resto, não
havia pano algum.
Em seguida o Capitão foi
subindo ao longo do rio, que corre rente à praia. E ali esperou por um velho
que trazia na mão uma pá de almadia. Falou, enquanto o Capitão estava com ele,
na presença de todos nós; mas ninguém o entendia, nem ele a nós, por mais
coisas que a gente lhe perguntava com respeito a ouro, porque desejávamos saber
se o havia na terra.
Trazia este velho o beiço
tão furado que lhe cabia pelo buraco um grosso dedo polegar. E trazia metido no
buraco uma pedra verde, de nenhum valor, que fechava por fora aquele buraco. E
o Capitão lha fez tirar. E ele não sei que diabo falava e ia com ela para a
boca do Capitão para lha meter. Estivemos rindo um pouco e dizendo chalaças
sobre isso. E então enfadou-se o Capitão, e deixou-o. E um dos nossos deu-lhe
pela pedra um sombreiro velho; não por ela valer alguma coisa, mas para
amostra. E depois houve-a o Capitão, creio, para mandar com as outras coisas a
Vossa Alteza.Andamos por aí vendo o ribeiro, o qual é de muita água e muito boa.
Ao longo dele há muitas palmeiras, não muito altas; e muito bons palmitos.
Colhemos e comemos muitos deles. Depois tornou-se o Capitão para baixo para a
boca do rio, onde tínhamos desembarcado. E além do rio andavam muitos deles
dançando e folgando, uns diante os outros, sem se tomarem pelas mãos. E
faziam-no bem. Passou-se então para a outra banda do rio Diogo Dias, que fora
almoxarife de Sacavém, o qual é homem gracioso e de prazer. E levou consigo um
gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se a dançar com eles, tomando-os pelas
mãos; e eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao som da gaita.
Depois de dançarem fez ali muitas voltas ligeiras, andando no chão, e salto
real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito.E conquanto com aquilo
os segurou e afagou muito, tomavam logo uma esquiveza como de animais montezes,
e foram-se para cima.E então passou o rio o Capitão com todos nós, e fomos pela
praia, de longo,ao passo que os batéis iam rentes à terra. E chegamos a uma
grande lagoa de água doce que está perto da praia, porque toda aquela ribeira
do mar é apaulada por cima e sai a água por muitos lugares. E depois de
passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles meter-se entre os marinheiros que
se recolhiam aos batéis. E levaram dali um tubarão que Bartolomeu Dias matou. E
levavam-lho; e lançou-o na praia. Bastará que até aqui, como quer que se lhes
em alguma parte amansassem, logo de uma mão para outra se esquivavam, como
pardais do cevadouro. Ninguém não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem
mais. E tudo se passa como eles querem — para os bem amansarmos!Ao velho com
quem o Capitão havia falado, deu-lhe uma carapuça vermelha. E com toda a
conversa que com ele houve, e com a carapuça que lhe deu tanto quês e despediu
e começou a passar o rio, foi-se logo recatando. E não quis mais tornar do rio
para aquém. Os outros dois o Capitão teve nas naus, aos quais deu o que já ficou
dito, nunca mais aqui apareceram -- fatos de que deduzo que é gente bestial e de
pouco saber, e por isso tão esquiva. Mas apesar de tudo isso andam bem curados,
e muito limpos. E naquilo ainda mais me convenço que são como aves, ou alimárias
montezinhas, as quais o ar faz melhores penas e melhor cabelo que às mansas,
porque os seus corpos são tão limpos e tão gordos e tão formosos que não pode
ser mais! E isto me faz presumir que não tem casas nem moradias em que se recolham;
e o ar em que se criam os faz tais. Nós pelo menos não vimos até agora nenhumas
casas, nem coisa que se pareça com elas.
Mandou o Capitão aquele
degredado, Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez com eles. E foi; e andou lá
um bom pedaço, mas a tarde regressou, que o fizeram eles vir: e não o quiseram
lá consentir. E deram-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram nada do seu. Antes,
disse ele, que lhe tomara um deles umas continhas amarelas que levava e fugia
com elas, e ele se queixou e os outros foram logo após ele, e lhas tomaram e
tornaram-lhas a dar; e então mandaram-no vir. Disse que não vira lá entre eles
senão umas choupaninhas de rama verde e de feteiras muito grandes, como as de
Entre Douro e Minho. E assim nos tornamos às naus, já quase noite, a dormir.
Segunda-feira, depois de
comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram então muitos; mas não
tantos como as outras vezes. E traziam já muito poucos arcos. E estiveram um
pouco afastados de nós; mas depois pouco a pouco misturaram-se conosco; e
abraçavam-nos e folgavam; mas alguns deles se esquivavam logo. Ali davam alguns
arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha e por qualquer coisa.
E de tal maneira se passou a coisa que bem vinte ou trinta pessoas das nossas
se foram com eles para onde outros muitos deles estavam com moças e mulheres. E
trouxeram de lá muitos arcos e barretes depenas de aves, uns verdes, outros
amarelos, dos quais creio que o Capitão há demandar uma amostra a Vossa Alteza.
E segundo diziam esses que
lá tinham ido, brincaram com eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais à
nossa vontade, por andarmos quase todos misturados: uns andavam quartejados
daquelas tinturas, outros de metades, outros de tanta feição como em pano de
ras, e todos com os beiços furados, muitos com os ossos neles, e bastantes sem
ossos. Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores, que na cor queriam
parecer de castanheiras, embora fossem muito mais pequenos. E estavam cheios de
uns grãos vermelhos, pequeninos que, esmagando-se entre os dedos, se desfaziam
na tinta muito vermelha de que andavam tingidos. E quanto mais se molhavam,
tanto mais vermelhos ficavam. Todos andam rapados até por cima das orelhas;
assim mesmo de sobrancelhas e pestanas. Trazem todos as testas, de fonte a
fonte, tintas de tintura preta, que parece uma fita preta da largura de dois
dedos. E o Capitão mandou aquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados
que fossem meter-se entre eles; e assim mesmo a Diogo Dias, por ser homem
alegre, com que eles folgavam. E aos degredados ordenou que ficassem lá esta
noite.
Foram-se lá todos; e
andaram entre eles. E segundo depois diziam, foram bem uma légua e meia a uma
povoação, em que haveria nove ou dez casas, as quais diziam que eram tão
compridas, cada uma, como esta nau capitaina. E eram de madeira, e das ilhargas
de tábuas, e cobertas de palha, de razoável altura; e todas de um só espaço,
sem repartição alguma, tinham de dentro muitos esteios; e de esteio a esteio
uma rede atada com cabos em cada esteio, altas, em que dormiam. E de baixo,
para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas,
uma numa extremidade, e outra na oposta. E diziam que em cada casa se recolhiam
trinta ou quarenta pessoas, e que assim os encontraram; e que lhes deram de
comer dos alimentos que tinham, a saber muito inhame, e outras sementes que na
terra dá, que eles comem. E como se fazia tarde fizeram-nos logo todos tornar;
e não quiseram que lá ficasse nenhum. E ainda, segundo diziam, queriam vir com
eles. Resgataram lá por cascavéis e outras coisinhas de pouco valor, que
levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos,
e carapuças de penas verdes, e um pano de penas de muitas cores, espécie de
tecido assaz belo, segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá, porque o
Capitão vo-las há de mandar, segundo ele disse. E com isto vieram; e nós tornamo-nos
às naus.
Terça-feira, depois de comer,
fomos em terra, fazer lenha, e para lavar roupa.Estavam na praia, quando
chegamos, uns sessenta ou setenta, sem arcos e sem nada. Tanto que chegamos,
vieram logo para nós, sem se esquivarem. E depois acudiram muitos, que seriam
bem duzentos, todos sem arcos. E misturaram-se todos tanto conosco que uns nos
ajudavam a acarretar lenha e metê-las nos batéis.
E lutavam com os nossos, e
tomavam com prazer. E enquanto fazíamos a lenha, construíam dois carpinteiros
uma grande cruz de um pau que se ontem para isso cortara. Muitos deles vinham
ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais para verem a
ferramenta de ferro com que a faziam do que para verem a cruz, porque eles não
tem coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como
cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira
que andam fortes, porque lhas viram lá. Era já a conversação deles conosco
tanta que quase nos estorvavam no que havíamos de fazer. E o Capitão mandou a
dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia e que de modo algum
viessem a dormir às naus, ainda que os mandassem embora. E assim se foram.
Enquanto andávamos nessa
mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios essas árvores; verdes uns, e
pardos, outros, grandes e pequenos, de sorte que me parece que haverá muitos
nesta terra. Todavia os que vi não seriam mais que nove ou dez, quando muito.
Outras aves não vimos então, a não ser algumas pombas-seixeiras, e pareceram-me
maiores bastante do que as de Portugal. Vários diziam que viram rolas, mas eu
não as vi. Todavia segundo os arvoredos são mui muitos e grandes, e de
infinitas espécies, não duvido que por esse sertão haja muitas aves!
E cerca da noite nós
volvemos para as naus com nossa lenha.
Eu creio, Senhor, que não
dei ainda conta aqui a Vossa Alteza do feitio de seus arcos e setas. Os arcos
são pretos e compridos, e as setas compridas; e os ferros delas são canas
aparadas, conforme Vossa Alteza verá alguns que creio que o Capitão a Ela há de
enviar.
Quarta-feira não fomos em
terra, porque o Capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo
e fazer levar às naus isso que cada um podia levar.Eles acudiram à praia,
muitos, segundo das naus vimos. Seriam perto de trezentos, segundo Sancho de
Tovar que para lá foi. Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o
Capitão ontem ordenara que de toda maneira lá dormissem, tinham voltado já de
noite, por eles não quererem que lá ficassem. E traziam papagaios verdes; e
outras aves pretas, quase como pegas, com a diferença deterem o bico branco e
rabos curtos. E quando Sancho de Tovar recolheu à nau, queriam vir com ele,
alguns; mas ele não admitiu senão dois mancebos, bem dispostos e homens de
prol. Mandou pensar e curá-los mui bem essa noite. E comeram toda a ração que
lhes deram, e mandou dar-lhes cama de lençóis, segundo ele disse. E dormiram e
folgaram aquela noite. E não houve mais este dia que para escrever seja.
Quinta-feira, derradeiro
de abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e
água. E em querendo o Capitão sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus
dois hóspedes. E por ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas, e veio-lhe
comida. E comeu. Os hóspedes, sentaram-no cada um em sua cadeira. E de tudo
quanto lhes deram, comeram mui bem, especialmente lacão cozido frio, e arroz.
Não lhes deram vinho por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem.
Acabado o comer,
metemo-nos todos no batel, e eles conosco. Deu um grumete a um deles uma
armadura grande de porco montês, bem revolta. E logo que a tomou meteu-a no
beiço; e porque se lhe não queria segurar, deram-lhe uma pouca de cera
vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço da parte de trás de sorte que segurasse,
e meteu-a no beiço, assim revolta para cima; e ia tão contente com ela, como se
tivesse uma grande jóia. E tanto que saímos em terra, foi-se logo com ela.
E não tornou a aparecer
lá. Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram
a vir. E parece-me que viriam este dia a praia quatrocentos ou quatrocentos e
cinqüenta. Alguns deles traziam arcos e setas; e deram tudo em troca de
carapuças e por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes
dávamos, e alguns deles bebiam vinho, ao passo que outros o não podiam beber.
Mas quer-me parecer que, se os acostumarem, o hão de beber de boa vontade!
Andavam todos tão bem dispostos e tão bem feitos e galantes com suas pinturas
que agradavam. Acarretavam dessa lenha quanta podiam, com mil boas vontades, e
levavam-na aos batéis. E estavam já mais mansos e seguros entre nós do que nós
estávamos entre eles.
Foi o Capitão com alguns
de nós um pedaço por este arvoredo até um ribeiro grande, e de muita água, que
ao nosso parecer é o mesmo que vem ter à praia, em que nós tomamos água. Ali
descansamos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo dele, entre esse arvoredo
que é tanto e tamanho e tão basto e de tanta qualidade de folhagem que não se
pode calcular. Há lá muitas palmeiras, de que colhemos muitos e bons palmitos.
Ao sairmos do batel, disse
o Capitão que seria bom irmos em direitura à cruz que estava encostada a uma
árvore, junto ao rio, a fim de ser colocada amanhã,sexta-feira, e que nos
puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que
lhe tínhamos. E assim fizemos. E a esses dez ou doze que lá estavam,
acenaram-lhes que fizessem o mesmo; e logo foram todos beijá-la.
Parece-me gente de tal
inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo
cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências.
E portanto se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e
os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se
farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que
os traga, porque certamente esta gente é boa e de bela simplicidade. E
imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem dar, uma vez que
Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons. E o Ele
nos para aqui trazer creio que não foi sem causa. E portanto Vossa Alteza, pois
tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvação deles. E
prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim!Eles não lavram nem criam. Nem
há aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou galinha, ou qualquer outro animal que
esteja acostumado ao viver do homem. E não comem senão deste inhame, de que
aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si
deitam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós
tanto, com quanto trigo e legumes comemos.
Nesse dia, enquanto ali
andavam, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som de um tamboril nosso,
como se fossem mais amigos nossos do que nós seus. Se lhes a gente acenava, se
queriam vir às naus, aprontavam-se logo para isso, de modo tal, que se os
convidáramos a todos, todos vieram. Porém não levamos esta noite às naus senão
quatro ou cinco; a saber, o Capitão-mor, dois; e Simão de Miranda, um que já
trazia por pagem; e Aires Gomes a outro, pagem também. Os que o Capitão trazia,
era um deles um dos seus hóspedes que lhe haviam trazido a primeira vez quando
aqui chegamos — o qual veio hoje aqui vestido na sua camisa, e com ele um seu
irmão; e foram esta noite mui bem agasalhados tanto de comida como de cama, de
colchões e lençóis, para os mais amansar. E hoje que é sexta-feira, primeiro
dia de maio, pela manhã, saímos em terra com nossa bandeira; e fomos
desembarcar acima do rio, contra o sul onde nos pareceu que seria melhor
arvorar a cruz, para melhor ser vista. E ali marcou o Capitão o sítio onde
haviam de fazer a cova para a fincar. E enquanto a iam abrindo, ele com todos
nós outros fomos pela cruz, rio abaixo onde ela estava. E com os religiosos e
sacerdotes que cantavam, à frente, fomos trazendo-a dali, a modo de procissão. Eram
já aí quantidade deles, uns setenta ou oitenta; e quando nos assim viram
chegar, alguns se foram meter debaixo dela, ajudar-nos. Passamos o rio, ao longo
da praia; e fomos colocá-la onde havia de ficar, que será obra de dois tiros de
besta do rio. Andando-se ali nisto, viriam bem cento cinqüenta, ou mais.
Plantada a cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiro lhe
haviam pregado, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei
Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram
conosco, a ela, perto de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de
joelho assim como nós. E quando se veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em
pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco, e alçaram as mãos,
estando assim até se chegar ao fim; e então tornaram-se a assentar, como nós. E
quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim
como nós estávamos, com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados que certifico
a Vossa Alteza que nos fez muita devoção. Estiveram assim conosco até acabada a
comunhão; e depois da comunhão, comungaram esses religiosos e sacerdotes; e o
Capitão com alguns de nós outros.
E alguns deles, por o Sol
ser grande, levantaram-se enquanto estávamos comungando, e outros estiveram e
ficaram. Um deles, homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos, se conservou
ali com aqueles que ficaram. Esse, enquanto assim estávamos, juntava aqueles
que ali tinham ficado, e ainda chamava outros. E andando assim entre eles,
falando-lhes, acenou com o dedo para o altar, e depois mostrou com o dedo para
o céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos!
Acabada a missa, tirou o
padre a vestimenta de cima, e ficou na alva; e assim se subiu, junto ao altar,
em uma cadeira; e ali nos pregou o Evangelho e dos Apóstolos cujo é o dia,
tratando no fim da pregação desse vosso prosseguimento tão santo e virtuoso,
que nos causou mais devoção.
Esses que estiveram sempre
à pregação estavam assim como nós olhando para ele. E aquele que digo, chamava
alguns, que viessem ali. Alguns vinham e outros iam-se; e acabada a pregação,
trazia Nicolau Coelho muitas cruzes de estanho com crucifixos, que lhe ficaram
ainda da outra vinda. E houveram por bem que lançassem a cada um sua ao
pescoço. Por essa causa se assentou o padre frei Henrique ao pé da cruz; e ali
lançava a sua a todos — um a um — ao pescoço, atada em um fio, fazendo-lha
primeiro beijar e levantar as mãos. Vinham a isso muitos; e lançavam-nas todas,
que seriam obra de quarenta ou cinqüenta. E isto acabado — era já bem uma hora
depois do meio dia — viemos às naus a comer, onde o Capitão trouxe consigo
aquele mesmo que fez aos outros aquele gesto para o altar e para o céu, (e um
seu irmão com ele). A aquele fez muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca; e
ao outro uma camisa destoutras. E segundo o que a mim e a todos pareceu, esta
gente, não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, do que entenderem-nos,
porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer como nós mesmos; por onde
pareceu a todos que nenhuma idolatria nem adoração têm. E bem creio que, se
Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão
tornados e convertidos ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier,
não deixe logo de vir clérigo para os batizar; porque já então terão mais
conhecimentos de nossa fé, pelos dois degredados que aqui entre eles ficam, os
quais hoje também comungaram. Entre todos estes que hoje vieram não veio mais
que uma mulher, moça, a qual esteve sempre à missa, à qual deram um pano com
que se cobrisse; e puseram-lho em volta dela. Todavia, ao sentar-se, não se
lembrava de o estender muito para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta
gente é tal que a de Adão não seria maior — com respeito ao pudor. Ora veja
Vossa Alteza quem em tal inocência vive se convertera, ou não, se lhe ensinarem
o que pertence à sua salvação. Acabado isto, fomos perante eles beijar a cruz.
E despedimo-nos e fomos comer. Creio, Senhor, que, com estes dois degredados
que aqui ficam, ficarão mais dois grumetes, que esta noite se saíram em terra,
desta nau, no esquife, fugidos, os quais não vieram mais. E cremos que ficarão
aqui porque de manhã, prazendo a Deus fazemos nossa partida daqui. Esta terra,
Senhor, parece-me que, da ponta que mais contra o sul vimos, até à outra ponta
que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que
haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa. Traz ao longo do mar em
algumas partes grandes barreiras, umas vermelhas, e outras brancas; e a terra
de cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é toda
praia... muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar,
muito grande; porque a estender olhos, não podíamos ver senão terra e arvoredos
— terra que nos parecia muito extensa. Até agora não pudemos saber se há ouro
ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a
terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho,
porque neste tempo d'agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas;
infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela
tudo; por causa das águas que tem!Contudo, o melhor fruto que dela se pode
tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente
que Vossa Alteza em ela deve lançar. E que não houvesse mais do que ter Vossa
Alteza aqui esta pousada para essa navegação de Calicute bastava. Quanto mais,
disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a
saber, acrescentamento da nossa fé!E desta maneira dou aqui a Vossa Alteza
conta do que nesta Vossa terra vi. E se a um pouco alonguei, Ela me perdoe.
Porque o desejo que tinha de Vos tudo dizer, mo fez pôr assim pelo miúdo. E
pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer
coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida,
a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a
Jorge de Osório, meu genro — o que d'ela receberei em muita mercê.Beijo as mãos
de Vossa Alteza. Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje,
sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.
Pero Vaz de Caminha.
FIM
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Alessandra